O homem vive cercado de cômodos ocupados por pessoas estranhas. Seu núcleo vacila cômodo a cômodo, embora deseje encontrar seu próprio leito. Sua prisão, construiu num árduo exercício de vaidade. O homem trabalha. O homem malha. O homem faz falso juízo de sua real capacidade. Cultiva uma paixão calada ao que lhe parece belo; ao que lhe destrata, contradiz e mata. Amando ao avesso, o homem não vê as chaves para abrir o cômodo de sua liberdade. Amando ao avesso o homem não encontra sua face fora de seu espelho.
Certo dia, o homem acorda atordoado. A seu lado, uma mulher nua já quase enrugava de tanto esperar e nada. Não é do seu feitio dormir cedo. Não é do seu feitio dormir ao lado de uma estranha que nada tem a lhe dizer senão bom dia. Não é isso o que deseja ouvir.
Então ele se levanta, lento e monótono, não lhe dedica a menor atenção, nem lhe dirige o olhar. Sua mão gira mecanicamente a maçaneta do quarto, de onde o homem sai na esperança de que a figura estranha desapareça, indesejada também saia, e sem muito alarde.
A mulher o ama. Ela o deseja e isso o incomoda profundamente, gera repulsa, desagrado, quase nojo. No outro cômodo outra mulher geme por si. Seu prazer nem sabe da existência do homem, mas ele, amando ao avesso, fixa sua escuta nesse gemido. Ele, amando doente o que não lhe é caro, o que não lhe carece, o que é carente de ser, fixa seu desejo no gemido impertinente, mas não goza de seu amor.
A amante não se manifesta, não se levanta, nem se move. Está lá por uma eternidade, e lá ficará se preciso – cumpre sua função no cárcere da vaidade. A amada não lhe presta serviço de amor. Não lhe deseja, não lhe conhece. Nada. O prisioneiro tenta outra porta. É uma orgia da qual não participa, não se furta a olhar. Recebe dos festivas o convite, não se move. Seus pés pesados parecem criar raízes, seu desejo não lhe dá a voz. A porta se fecha. Ele permanece imóvel, não imune – o homem. Sua vaidade ainda o trai.
(Rita Maria)
existe algo mais certo do que esse texto?
a vaidade é uma vaca que mal regurgita.
e nenhuma reflexão é(de todo) besta.
♫ruído. chuva. bocejo♫